Capítulo I - Guerra Urbana


Quatro pessoas...elas nunca se viram, nunca passaram nem perto uma da outra..quatro pessoas..que por algum motivo terão seus destinos traçados e participarão de um mesmo episódio importante. Duas estão em um ônibus..é um casal.
O ônibus não está muito cheio, é meio da tarde no Rio de Janeiro então ainda não é a “hora do rush”, estão sentados conversando. Eles discutem, quer dizer discussão de casal quem normalmente fala mais é a mulher. O homem normalmente esbraveja e em pensamento pergunta por que casou com aquela jararaca. Quantas mulheres deixou de comer porque casou, quantas saídas com os amigos, é..mas ele casou e aquela menina linda com quem ele casou e achava amar agora era aquela jararaca sentada ao lado reclamando.
E ela reclamava..queria uma geladeira nova porque a deles estava com problema, o congelador não funcionava e a parte debaixo esfriava demais, assim o sorvete virava leite e o queijo endurecia. E ela falava..falava..o homem pensava que a situação estava feia,  sua empresa demitindo e ele sem estabilidade, era o único que trabalhava em casa e o dinheiro mal dava para pagar as contas e a mulher reclamando de geladeira. Nessas horas ele pensava onde estavam as famosas balas perdidas do Rio de Janeiro para acertar aquela mulher..e ela reclamava..
Do lado de fora outro casal andava. Dois adolescentes deviam ter dezesseis anos, por aí. Ela também falava demais e ele se enervava. Eles tinham um filho de dois anos e ela estava grávida de três meses mesmo os dois com tão pouca idade. A criança não estava com eles, deixaram com uma vizinha. E assim como a do ônibus ela falava e reclamava..Eles não tinham nem o que comer naquele dia a criança estava passando fome e precisavam comprar leite, comida, qualquer coisa para alimentar o filho.
Pararam no ponto de ônibus e ela reclamando. Ele finalmente parou e perguntou o que fazer? Aí que ela ficou puta mesmo..todo mundo sabe que mulher normalmente quer solução não perguntas.
A menina disse que havia uma solução. Eles deviam na mercearia e o dono não queria mais vender fiado. Mas ela sempre notou que ele a observava com desejo quando ia ao local. Era só ela se oferecer sexualmente ao homem que conseguiria os produtos.
Seu companheiro reagiu ferozmente e disse que mulher dele não dava pra outro e que ele tinha uma solução para o problema. Ela perguntou qual e ele levantou discretamente a camisa mostrando um revolver. A menina se assustou e perguntou o que ele pensava fazer. O menino disse que assaltaria o próximo ônibus que chegasse.
A garota ainda argumentou que era loucura, arriscado. Mas ele disse que não tinha outra saída, que ela não viraria puta. A menina então concordou e perguntou como seria. Ele disse que entrariam, ela passaria pela roleta e ele anunciaria o assalto e colocaria a arma na cabeça do cobrador enquanto ela recolheria o dinheiro do ônibus e os pertences das pessoas. A menina concordou e ele então entregou uma faca de cozinha para ela caso precisasse.
Um ônibus chegou e eles fizeram sinal. Era o ônibus do casal da geladeira. O ônibus parou e eles entraram.    
Como eu disse antes os quatro não se conheciam e teriam seus destinos cruzados. Mas o desdobramento dessa história eu conto depois, tenho problemas piores pra resolver agora.
Eu estava em um galpão abandonado em Santa Cruz, bairro do Rio de Janeiro longe pra caralho. Estava atrás de uma pilastra do galpão agachado e com as mãos na cabeça enquanto um grande tiroteio tomava conta do galpão.
É amigos, eu estava fudido..tinha me metido em uma grande merda. Em um momento da minha existência minha vida tomou outro rumo e me levou a esse momento. Havia mais ou menos quarenta homens naquele galpão trocando tiros com todo tipo de armamento possível. Entre esses quarenta tinha cinco homens que naquele momento comandavam a bandidagem do Rio. Era pra ser um encontro de negócio, mas deu cagada e eles resolveram o papo amistoso na bala. Por um milagre eu ainda estava avivo.
No galpão estavam Pardal, o traficante mais procurado do país. Lucinho, um garoto que nasceu em berço de ouro, mas isso não evitou que ele caísse na marginalidade e virasse um dos bandidos mais temidos da cidade. Roberto Freitas, o Freitas. Também chamado de major. Policial corrupto que comandava a milícia da zona Oeste da cidade. Oswaldo Pitta Jr, o Pittinha, maior banqueiro de jogo do bicho da região Sudeste, patrono da escola de samba Acadêmicos da Guanabara e Getulio Peçanha ex senador do estado do Rio de Janeiro, bispo evangélico e líder das pesquisas pro governo estadual.

Os cinco lá trocando tiros junto com seus capangas e eu escondido com a cueca toda borrada tentando lembrar as orações que minha mãe ensinara quando eu era criança. Nessas horas a gente lembra que Deus existe.
E quem sou eu? Meu nome é Gilberto Martins, sou jornalista, até começar esse rolo todo trabalhava no “Correio Carioca” como jornalista policial. Mas minha ambição e confesso, pouco caráter, levaram-me para aquele galpão.
Mas a história não começava ali, tinha motivo para que chegasse aquele ponto e eu vou contar para vocês.
Um ano antes eu dormia profundamente em minha cama. Era verão no Rio de Janeiro e parceiro..pra quem não conhece o verão do Rio eu vou contar, é foda. Aqui no verão urubu voa se abanando e o pastor libera os fiéis a irem ao culto de biquíni e sunga.
Era madrugada e eu de bruços na cama e minha cueca vermelha babava no travesseiro sonhando que comia a Beyoncé de quatro numa hidromassagem bem fresquinha quando ouvi um telefone tocar. Lembro que no sonho eu falei para ela “your tell baby” e ela começou a gemer e cantar “single lady”. O telefone tocou tanto que acordei. A música “single lady” era o toque do meu celular e eu não sou viado, só gosto da música.  
Puto da vida e de pau duro acordei e atendi o telefone. Do outro lado da linha reclamaram que era difícil falar comigo tinham tentado a cobrar e não completava. Respondi que meu telefone era “pai de santo” só recebia e perguntei qual era o problema para me ligar duas horas da manhã.
Era minha “fonte” do morro do Trololó falando que chegaram umas viaturas policiais no pé do morro com placas escondidas por adesivos e policiais vestidos de preto com touca ninja e fuzis na mão começaram a subir o morro. Iria dar merda.
Um bom jornalista não perde uma grande notícia e mesmo eu que não era grande coisa como jornalista sabia que ali tinha coisa quente pra mim. Se os caras estavam subindo o morro com placas escondidas, de preto com touca ninja e fuzis boa coisa não era. Não era pra entregar flores aos favelados. Esqueci a Beyoncé, coloquei minha roupa e parti pro morro.
Eu já conhecia bem aquele morro, subi muito o Trololó quando criança para brincar e mais velho pra comprar maconha e cocaína. Tive minha fase de “dar uns tirinhos”, mas nunca fui viciado. Parei com o pó e só fumava meu baseado de vez em quando pra relaxar.
Peguei meu fusca caindo aos pedaços, como sempre demorou pra pegar e fui pro morro ver qual era da situação.
Cheguei ao local e vi as viaturas embaixo paradas com ninguém dentro. O tiroteio comia solto no morro. Sem nem querer saber se arriscava minha vida subi o Trololó com meu celular pronto para tirar fotos, filmar e assim eu conseguir uma grande matéria.
Subi e lembrei logo de um filme que vi “O resgate do soldado Ryan”, parecia àquela cena do desembarque das tropas americanas na Normandia. Eu que sempre adorei filmes de guerra era viciado nesse filme. Apesar de anos e anos de jornalismo policial eu ainda era capaz de me assustar com as coisas que via e eu vi muita coisa naquela madrugada.
Corpos e mais corpos pelo chão, alguns irreconhecíveis, sem cabeças até. Pessoas serem executadas sem dó nem piedade. O chefe dos policiais parava o maluco que se aventurava a andar na rua naquele momento e já dando tapa na cara revistava, se não encontrasse nada era pior, tomava tapas, socos, chutes, um verdadeiro linchamento. Isso se pessoa desse sorte, senão era executada mesmo.
Se não desse sorte aconteceria o que vi com um rapaz. Escondido atrás de um muro, quase amanhecendo eu vi um grupo e cinco policiais pararem um rapaz negro com bíblia na mão. Encostaram ao muro revistaram e gritando perguntaram onde estava o pó. O rapaz desesperado disse que não sabia de pó nenhum que era trabalhador, religioso e estava indo ao culto. O líder dos policiais gritava “culto é o caralho!! Eu sei bem qual seu tipo de culto filho da puta!!” e deu um tapa na cara do sujeito.
Vários tapas na cara se seguiram e o rapaz negro chorando implorava para que não batessem nele porque ele não era traficante era um homem honesto. Depois de muito apanhar o líder mandou que ele se ajoelhasse. O homem se ajoelhou e o policial encostou uma arma em sua cabeça. O rapaz gritou ”piedade senhor!!” e tomou um tiro caindo morto.
Eu filmei tudo de meu celular. Depois da execução o líder policial levanta a touca ninja e vejo que é o Major Freitas. Policial considerado e respeitado pela população fluminense. Ele puto ordena que peguem a bíblia da mão do rapaz e coloquem uma arma em sua mão para parecer que foi troca de tiros.
O Major estava atrás do Pardal, por ironia do destino Pardal, dono do movimento no Trololó era meu amigo de infância. Soltávamos pipa juntos no alto de morro e não fazia muito tempo ele havia assumido o controle da favela.
Pardal era sanguinário e no dia anterior com um lança míssil explodiu um helicóptero do BOPE matando os policiais. Na vagabundagem existe uma lei, cada um na sua onda, cada um na sua praia. Não me incomoda que eu não te incomodo. Pague seu “arrego” direitinho que ninguém vai mexer com seu negócio, mas se matar policial parceiro, ainda mais do BOPE, você tá fudido, vira guerra.
E pardal cometeu esse erro, podia ficar numa boa vendendo seus produtos pros playboys e viciados da área, mas foi se meter a fodão e derrubou o helicóptero dos caras. Agora sua cabeça era valiosa e evidente que ele cometeu um ato de burrice, mas burro não era, sabia que o negócio iria sobrar pro seu lado e já havia se mandado do morro há muito tempo. O pau estava comendo em seus domínios, mas ele não estava lá.   
A barbárie ainda continuou por um tempo. Freitas e seu bando entravam nas casas das pessoas a pontapés gritando onde estava o Pardal. As pessoas eram retiradas de suas casas a porrada e no meio da rua, pra vizinhança ver e se amedrontar eram espancadas e ouviam os gritos de “cadê o filho da puta do Pardal??”. Os policiais quiseram nem saber batiam em homens, mulheres, velhos, uma senhora de idade tomou tapa na cara na frente de seu esposo já de idade muito avançada que só chorava. Freitas com dedo em riste falava que se não achasse o Pardal mataria todo mundo.
Em alguns era porrada em outros era o saco mesmo. Colocavam saco plástico na cabeça das pessoas sufocando para que contassem. As crianças choravam desesperadas os policiais tinham sangue nos olhos. Freitas estava incorporado pelo Diabo e sim ele teria coragem de matar aquelas pessoas todas. Mas assim como Pardal ele não era burro. Iria queimar seu filme com a população e as autoridades. Então ele “só” matou traficantes e suspeitos como o pobre evangélico.
O dia amanheceu e Freitas achou melhor ir embora com seus comandados. Desceram putos por não encontrarem o Pardal. Depois que desceram e foram embora apareci e tirei fotos dos corpos, filmei as pessoas desesperadas chorando. Era uma grande barbárie a pior que presenciei na vida. Evangélicos surgiram nas ruas e oravam perto dos corpos, fotografei e filmei tudo.
Entrevistei algumas pessoas, a maioria não quis falar por medo, mas alguns revoltados colocaram para fora todo sentimento que tinham. Liguei a cobrar pra redação do jornal e contei o que havia acontecido e estava correndo pra lá.
Desci o morro quando a “polícia oficial” chegava e a imprensa finalmente descobria o que estava acontecendo. Passei por todos quase despercebido até que um colega me puxou e perguntou o que tinha acontecido naquele morro, olhei para ele e respondi “O Vietnam”.
Fui para o jornal e passei para eles tudo o que aconteceu e vi, fotografias, imagens e entrevistas. As pessoas da redação vibravam como se fosse um gol nem ligando para o que aquela gente tinha passado. Meu chefe me deu um beijo na testa e falou que me amava. Imediatamente meu material foi pro site do jornal. E uma edição extra em papel foi rodada enquanto meus colegas ainda tentavam entender o que acontecia o “Correio Carioca” já informava tudo.
Desci a redação e fui a uma padaria ao lado tomar meu café da manhã. Pedi a média de café com leite com pão e manteiga enquanto a TV ligada mostrava a barbárie no Trololó. As pessoas na padaria chocadas comentavam o acontecido enquanto eu bebia meu café e pensava que o único órgão do governo que subia favelas era a polícia.
Vivíamos a era da violência.

LIVRO ERA DA VIOLÊNCIA

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