REDE PERIGOSA


*Conto publicado no blog Ouro de Tolo em 2/3/2013


Era uma grande história e que com certeza dava um livro, aliás, muitas daquelas histórias davam um bom livro. Enquanto todo mundo ria Baltazar de cara fechada contou que teve problemas com aquela história, explicar aquele carro vermelho e que nunca mais foi julgador nem de escolha de musas de blocos.

Enquanto bebíamos, comíamos e cantávamos meu celular tocou. Fui ver e era a Bia. Tentei fingir que não ouvia, mas meu pai percebeu e mandou que eu atendesse, pois podia ser importante.

Saí da mesa indo para um canto mais tranqüilo e atendi. Bia me perguntou se eu podia ficar com a Julinha de noite já que tinha um show para ir. Irônico mandei que levasse junto e ela respondeu que não tinha como perguntando se teria como ficar com ela.

Estava com saudades de minha filha e concordei. Bia contou que oito horas o Zé passaria em meu apartamento e deixaria Julia comigo. Perguntei quem era Zé e ela respondeu “meu namorado”.

Decidi contar até cinco para não explodir. No três não aguentei e soltei “Você nem conhece direito esse cara e vai deixar nossa filha sozinha com ele? E se for um pedófilo?”. Bia me cortou dizendo “as oito ok?”. Só respondi “ok” e ela desligou.

Desliguei furioso comentando comigo mesmo “Zé? Que porra de Zé é esse? Isso é nome de gente?” Quando meu pai me chamou de volta pra roda.

Sentei dizendo que a Julia iria pra minha casa de noite levada pelo Zé. Meu pai riu e me passou o tamborim para que tocasse. 

Eu estava tão desnorteado que peguei o tamborim pra tocar sem nem lembrar que nunca tocara tamborim na vida. Batia no instrumento pensando “perdi para um Zé”.

Enquanto tocávamos teve um momento que todo mundo parou. Continuei por alguns segundos e parei também. Uma moça com roupa fechada, saia comprida, uma bíblia na mão, cabelo preso e olhando para baixo passava. Os homens da mesa cumprimentaram educadamente e ela sem olhar respondeu.

A moça passou e foi se distanciando de nossos olhares. Um na mesa comentou “tadinha”, outro “ela não merecia isso”, um terceiro disse “que fardo” e eu nada entendia.

Perguntei ao meu pai se ele sabia de algo e ele comentou que era uma história triste. Pedi que me contasse.

O nome dela é Clara, homenagem da mãe a Clara Nunes de quem é grande fã. A mãe de Clara era passista da Portela, contemporânea de Clara Nunes e decidiu dar o nome para a filha que também tinha raízes portelenses.

Começou saindo em ala mirim, virou passista e em pouco tempo ganhou destaque na escola. Negra linda, com um sorriso que parecia refletir o Sol Clara era cativante, carismática.

Decidiu aprender a arte da porta bandeira entrando na escolinha do mestre Manoel Dionísio. Mostrou talento, se sobressaiu e rapidamente se tornou terceira porta bandeira da escola.

Nessas condições desfilou dois anos até que recebeu um convite do Arame de Ricardo para ser sua primeira porta bandeira.   

Feliz Clara conciliou as duas escolas de samba e no primeiro ano no Arame se deu muito bem tirando com seu parceiro as notas 10 pra escola.

Era uma jovem comunicativa, alegre e feliz como as meninas de sua idade. Tinha uma vida normal fora do samba frequentando shopping center, paquerando, estudando e sonhando com seu futuro.

Tinha um computador em casa e era capaz de ficar horas nele navegando por redes sociais mesmo a mãe mandando desligar para dormir ou mandando que tomasse cuidado com os “tarados”.

Mas Clara era esperta, descolada e não se deixava levar. Aproveitava as redes sociais para fazer amigos e em um desses momentos apareceu André em sua vida.

Clara entrou no facebook e viu seu pedido de amizade. Não conhecia o rapaz, mas mesmo assim lhe aceitou. Com o tempo começou a perceber que o rapaz “curtia” tudo que ela escrevia na rede social e achou “engraçadinho” isso.

O rapaz apenas curtia, falava nada. Nunca comentou uma postagem de Clara ou mesmo lhe chamou pra conversar em chat. A moça ficou curiosa para saber quem era aquele rapaz afinal e um dia decidiu chamá-lo pra conversar.

Clara digitou no chat “oi André, tudo bem?”. Esperou alguns minutos até que recebeu a resposta, seca, mas respondeu “oi”.

Clara novamente perguntou se estava tudo bem com ele e André respondeu que sim. Aos poucos o papo foi se desenvolvendo.

André era um rapaz tímido, de poucos amigos, mas agradável. Era poeta e começou a mostrar suas poesias para a porta bandeira que sempre foi fã de versos e gostou. Clara foi contar um pouco de sua vida, mas André respondeu que já sabia, sabia que ela era porta bandeira.

Clara curiosa perguntou como ele sabia e André contou que uma noite foi a um ensaio da Portela e lhe viu dançando. Achou bonita e pesquisou no google sobre sua vida. Descobriu que era a principal porta bandeira de uma escola menor e até foi na Intendente Magalhães assistir sua performance.

A Intendente Magalhães é uma avenida no bairro de Campinho no Rio de Janeiro que é utilizada pelas escolas menores pra fazerem seus desfiles, é a Marquês de Sapucaí das pequenas.

Completou dizendo que era um grande fã da moça e sabia até seu time de futebol e artista preferido. Clara ficou um pouco preocupada com tamanha idolatria e disse ao rapaz que sairia um pouco da internet, mas depois conversariam.

Saiu da conversa e colocou a seta em cima da marcação “desfazer amizade” pensando em não ter mais contato com André. Mas acabou não tendo coragem e apenas saiu da internet e chamou amigas para passear no shopping.

Sentadas na praça de alimentação lanchando Clara contou a história para as amigas. Uma disse “psicopata”, outra “maluco” e a terceira perguntou se era bonitinho.

Tomando milk shake Clara contou que nem deu tempo de perceber, mas até que o papo foi bom. Completou dizendo “ele é poeta”.

A amiga que chamou de psicopata disse que esses eram os piores, todo poeta era maluco, mas Clara não se intimidou.

Foi para o ensaio na Portela e ao chegar em casa ligou o computador. Mal entrou no facebook e André lhe chamou. Clara respondeu e rapaz perguntou se ela ficara assustada com tudo que ele sabia dela. Clara confessou que sim e André mandou que se despreocupasse que nunca lhe faria mal.

Clara se desarmou e conversaram. Não só naquela noite como em todas as noites acabando por se tornarem bons amigos. Clara contava de coisas de sua vida como a falta do pai que morrera num acidente com uma lotada e André da falta da mãe que lhe abandonara com o pai por causa de outro homem.

André se revelou a Clara como uma pessoa solitária, sem amigos nem mesmo na escola e Clara tentava de alguma forma lhe ajudar mesmo tento contato apenas virtual.

Clara não conhecia André, mas o contato com o rapaz já mexia com sua vida. Só saía para a escola e os ensaios de samba passando o tempo todo na frente do computador conversando com o amigo. André passava problemas em casa, apanhava do pai e falava em fugir de casa.

Um dia ela entrou on line e o amigo não estava. Esperou um pouco e nada. Entrou em sua página pessoal e ficou preocupada quando viu uma postagem do rapaz reclamando do colégio e dos alunos do local. Reclamando que sofria bullying e odiava os colegas.

Depois de um tempo André entrou on e preocupada Clara chamou o amigo e perguntou se algo ocorria. Ele desconversou e ela insistiu dizendo que viu a postagem dele falando sobre o colégio. Ele respondeu que não queria falar sobre aquilo. Clara perguntou como ele estava com o pai e o rapaz respondeu que também não queria falar sobre ele.

Os dois continuaram em silêncio o restante da noite até que André desligou. Clara também desligou e foi dormir pensando na situação.

A verdade é que aquela relação estava fazendo mal a ela. Deixara de viver para conversar com um rapaz que não conhecia de verdade e problemático. Clara sabia que aquela situação não poderia continuar senão André entraria em um buraco e lhe puxaria junto.

Ficou uns dias sem entrar na internet até que seu celular tocou. Clara atendeu e era ele. André.  

A moça assustada perguntou como ele conseguira seu telefone. André sem responder perguntou porque Clara sumira e ela mentiu dizendo que ensaiava muito para o carnaval seguinte.

André comentou que se enchera de coragem para ligar por um motivo muito importante. Estava gostando dela e convidou para um cinema.

Clara ficou sem reação com o que André disse e ele cobrou uma posição. A moça pediu desculpas, respondeu que não dava e desligou o telefone.

Clara excluiu André do facebook e depois de dois dias de insistência do rapaz ligando trocou o número do celular.

Perdeu todos os tipos de contato com ele e voltou a ter uma vida normal. Saía com os amigos, ia a shopping, danceteria, ensaiava e até um ficante arrumou. Estava feliz. 

Em um ensaio da Portela na Sapucaí sentiu-se mal no fim do desfile com um arrepio cruzando sua espinha e tonteira. Foi acudida e levada pra casa.

No dia seguinte acordou e encontrou sua mãe paralisada vendo televisão. Perguntou qual era o problema e a mulher chocada disse que um rapaz invadiu o colégio que estudava, matou doze alunos, três professores e se matou logo depois.

Clara sentou-se ao lado da mãe e comentou “essa humanidade não tem mais jeito mesmo, foi nos Estados Unidos?”. A mãe respondeu “Nada, foi aqui no Rio de Janeiro, plantão direto na tv sobre o caso”. Clara sentiu o mesmo arrepio da noite anterior e ficou branca quando viu a foto do assassino.

Era André.

Clara deu um grito e a mãe perguntou o que ocorria. A menina
desesperada gritava e apontava pra tv dizendo “É o André!! É o André!!” Logo depois desmaiou.

Foi medicada no hospital e voltou pra casa em silêncio com a mãe querendo saber o que ocorria. Mas Clara ficou quieta, sem dizer uma palavra.

No dia seguinte todas as emissoras de tv, imprensa em geral estava no enterro das quinze vítimas. Ninguém no enterro de André.

Apenas Clara que chegou com uma flor na mão chorando e colocou a mesma sobre o caixão enquanto André era enterrado em uma cova rasa. Baixinho com o rosto coberto de lágrimas Clara disse “desculpa”.

E foi embora do cemitério, apenas uma parte dela.























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