CASO PASSIONAL


*Capítulo da coluna "Enredo do meu samba" publicado no blog "Ouro de Tolo em 03/08/2013


Comecei a rir e Panguá pediu-me que não fizesse isso, pois o caso era sério. Perguntei como Belezudo podia ter sido tão otário dessa forma, ter desconfiado de nada e Panguá respondeu que Apolinério teve a dele depois.

Curioso perguntei o que tinha ocorrido com o homem e Panguá respondeu que contava em outra hora, precisava terminar o serviço. Insisti, mas naquele instante Julinha acordou e achei melhor deixar Panguá trabalhar e cuidar de minha filha.

Fui para a cozinha preparar seu café da manhã enquanto ela assistia desenho na tv. Nunca fui bom de cozinha e de forma atabalhoada fiz ovos, torradas e levei pra Julinha.

Sentamos à mesa. Mandei que ela aproveitasse que era tudo dela e minha filha comeu um pedaço de ovo. Fez uma careta, a mesma que eu fiz comendo e falei que era melhor tomarmos café na rua.

Deixei Panguá trabalhando enquanto tomávamos café numa lanchonete próxima. Nos divertíamos, brincávamos e no fim levei Ana Júlia ao parque.

Passamos um dia especial. Li para minha filha, comprei algodão doce para ela. Corremos, ela brincou com gansos e no fim apenas olhávamos o céu deitados na grama.

Quando levantamos para almoçar vi uma figura conhecida, o Dirceuzinho. 

Grande camarada da Unidos de Padre Miguel. Cumprimentei o rapaz e conversamos um tempo. Sobre a vida, samba e o livro que eu estava escrevendo.

Em determinado momento perguntei pelo Jece Arruda, seu irmão carnavalesco que rodou por várias escolas como Unidos de Bangu, Acadêmicos de Santa Cruz e União do Parque Curicica.  

Dirceuzinho desconversou dizendo que estava atrasado, apertou minha mão e partiu. Vi que ali tinha coisa errada.

Almocei com Julinha em uma churrascaria e voltamos para casa. Panguá já terminara o serviço e ido embora. Minha filha ficou vendo tv enquanto liguei o computador indo direto ao google e digitando o nome Jece Arruda.

Apareceram notícias com seu nome e ali entendi o porque do irmão dizer nada. Li todas as notícias e liguei para meu pai contando o que tinha descoberto. Ele conhecia a história e me contou em mais detalhes.

Jece Arruda era um carnavalesco talentoso. Mais velho de doze irmãos fazia teatro em Recife e decidiu tentar a sorte no Rio de Janeiro. Veio com a cara e a coragem, uma mão na frente e outra atrás.   

Chegou e não teve medo de trabalho, nunca teve. Trabalhou carregando caixas em um sacolão, como faxineiro em um hospital, foi camelô, tentou de tudo e corria atrás de seu sonho no teatro.

Conseguiu entrar para uma companhia teatral, mas não ganhava dinheiro então ao mesmo tempo trabalhava dirigindo kombis fazendo lotação.

A companhia era modesta então cada um se virava no que podia.

Jece entendia de cenários e figurinos então foi encarregado das duas situações. Mostrou talento atuando, mas mais ainda como cenógrafo e figurinista e logo chamou atenção.

Um amigo da companhia lhe chamou para trabalhar no barracão de uma escola de samba. Jece nunca pisara em uma na vida, mas o amigo explicou que ali se trabalhava com cenografia, figurinos, como um grande teatro. Jece foi com o amigo e se encantou.

Acabou indo trabalhar no barracão da Alegria da Zona Sul e gostou da experiência. Cada vez mais se dedicava ao carnaval deixando de lado o teatro. Trabalhou para várias escolas ganhando a confiança de carnavalescos. Aos poucos virou assistente, braço direito deles.

Já ganhava bem melhor do que quando chegou no Rio de Janeiro e com isso trouxe alguns de seus irmãos para o Rio como Dirceuzinho. Por indicação começou a trabalhar também numa emissora de televisão como figurinista. Jece estava quase no auge.

O auge chegou pouco depois quando foi convidado para ser carnavalesco da Unidos de Bangu. O homem pegou a chance com afinco e montou um belo carnaval fazendo a escola subir de grupo. 

Rodou por outras histórias fazendo belos trabalhos e já era considerado um dos melhores de sua geração. A chance no grupo especial ainda não chegara, mas tudo era questão de tempo.

Sua mais recente escola foi a Mocidade de Bonsucesso e preparou um carnaval ambicioso, para as cabeças e foi ali que a história aconteceu.

Jece era homossexual assumido. Não fazia questão nenhuma de esconder e fazia o tipo espalhafatoso sendo uma pessoa folclórica.

Divertido chegava numa escola de samba, apontava os ritmistas e falava “já fiz todos eles”.

Na Mocidade de Bonsucesso não era diferente. Na escola tinha um compositor jovem, cerca de vinte anos que estava com um bom samba disputando na escola, o Diguinho Mocidade. Sempre que sua parceria subia no palco Jece comentava com os amigos “que delícia”.

No dia da feijoada da escola, na metade da disputa, Jece chegou perto de Diguinho e falou em seu ouvido “passa lá em casa pra comer uma pizza”. Colocou um papel em seu bolso e saiu.

Os amigos ficaram mexendo com Diguinho que sem graça pegou o papel e respondeu que tinha nada escrito, era brincadeira do carnavalesco.

Mas não era. No papel estava escrito “o que você quiser” e o endereço do carnavalesco.

Alguns dias depois Jece bebia champanhe sozinho na sala de seu apartamento vendo “A noviça rebelde” na tv quando a campainha tocou. Quando atendeu teve uma surpresa. Era Diguinho. 

O compositor perguntou “o que eu quiser?”. Jece respondeu que sim e o rapaz completou “então peça a pizza”.

Jece puxou Diguinho para dentro e o que ocorreu depois é impróprio para menores. Fizeram um amor selvagem, rasgado, suado mostrando que existe pecado do lado debaixo do Equador.  

No fim estavam os dois suados na cama de Jece descansando. O carnavalesco fumava um cigarro e ria comentado “Você héin? É danado, não sabia que era do babado”.

Diguinho nada comentava então Jece colocou a cabeça em seu peito e disse “vai meninão, me diz o que quer”. Diguinho ficou um tempo em silêncio e respondeu.

“Quero o samba”.

Jece olhou para ele que completou “quero vencer a disputa de samba enredo, que meu samba seja o escolhido pela Mocidade de Bonsucesso”.

Jece Arruda sempre foi um cara íntegro, honesto e nunca se metera nessas questões. Se Diguinho tivesse pedido uma moto, um carro, uma roupa de marca o carnavalesco teria dado. Mas o samba complicava.. 
 
A escola tinha preferência por outro samba e o de Diguinho já estava pra ser eliminado. O carnavalesco ficou com aquela história na cabeça e pensando o que fazer.

Na eliminatória seguinte a direção da escola se reuniu na sala do presidente e a decisão era cortar o samba de Diguinho, mas pela primeira vez Jece se meteu em uma eliminatória e pediu que o samba continuasse pelo menos mais uma semana. 
 
Todos estranharam porque Jece, como eu disse, nunca se metia. O presidente perguntou o motivo e o carnavalesco sem olhar em seus olhos apenas respondeu que o samba era adequado ao enredo e que merecia nova chance. 

O samba não caiu e o caso entre os dois era cada vez mais ardente. Jece resolveu ajudar e contratou um cantor de ponta pra defender o samba e ajudou financeiramente para que a parceria de Diguinho botasse torcida.

O samba cresceu como esperado e Jece trabalhava forte nos bastidores pela vitória. Na final de samba discretamente o carnavalesco desejou boa sorte e Diguinho respondeu “não preciso, tenho você”.

Os sambas se apresentaram e os dirigentes foram pra sala votar no campeão. Cada um votou no seu preferido e o de Diguinho perdeu por um voto. O presidente já se encaminhava para fora da sala e assim anunciar quando em desespero Jece gritou “não”.

Todos pararam e Jece completou “se o samba que eu quero não ganhar peço demissão agora”. Ficou um clima ruim na sala até que por contragosto o presidente respondeu “está bem, será como você quer”.

O presidente anunciou o samba do Diguinho e uma grande festa foi feita pelos em um bar compositores. Jece participou da festa e discretamente saiu dela com Diguinho.

Foram pro apartamento do carnavalesco, transaram e no fim Diguinho se levantou para ir embora. Jece disse que era cedo e nisso o compositor se virou e disse pra ele.

“Desculpe Jece, eu não sou viado. Tínhamos um negócio eu transava com você e você me dava o samba. As duas partes cumpriram suas promessas e o negócio acaba aqui”.    

Em desespero o carnavalesco se levantou e pediu que o amante não lhe abandonasse. Ajoelhou-se a seus pés, agarrou sua perna e prometeu mundos e fundos para que não lhe deixasse.

Mas tudo em vão. Diguinho não lhe deu atenção e antes de bater a porta disse irritado “Para!! Não gosto de viado porra!!.  

No ensaio seguinte da escola a direção toda da agremiação tratou Jece de forma fria. O carnavalesco se “queimara” na escola com a imposição que fez na final. Mas Jece nem ligava. O homem desolado enchia a cara em um canto da quadra quando viu Diguinho aos beijos com uma loura e decidiu ir embora.

No fim do ensaio Diguinho saiu da quadra abraçado com a loura quando Jece surgiu a sua frente. Diguinho perguntou o que o carnavalesco queria e esse respondeu.

“Te entregar sua pizza”.

Jece sacou um trinta e oito e deu um tiro no coração de Diguinho que caiu fulminado. Logo após Jece colocou a arma na boca e atirou se matando.   

A multidão logo se juntou em volta dos corpos enquanto a loura gritava desesperada. Acabava ali a história que em vez de terminar começou em pizza.

Uma pizza muito cara.


ENREDO DO MEU SAMBA (CAPÍTULO ANTERIOR)

A APOSTA
 

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