CONSTRUÇÃO


*Conto da coluna "O buraco da fechadura" publicado no blog Ouro de Tolo em 15/6/2013


“Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina”
O dia nem amanhecera ainda no Rio de Janeiro, mas em um barraco no morro da roda viva já tinha pessoas de pé. Francisco tomava um banho gelado para poder despertar enquanto Geni, sua esposa, colocava o café da manhã na mesa. 
Um café preto com pão de ontem porque o dinheiro andava curto na casa. Mas o que Francisco queria de verdade era um copo de cachaça para aliviar o frio do inverno carioca e seu sofrimento. Comeu o pão devagar tentando pensar na vida enquanto Geni falava das contas que tinham que pagar e do tênis do filho mais velho que estava furado.
Francisco mastigava como um burro comendo mato no pasto e parecia não ouvir o que Geni dizia. Já conhecia o discurso da mulher e automaticamente respondia com “ta bem, ta bem” tudo que ela contava.
Olhou o relógio na parede que ficava embaixo de uma foto de Jesus Cristo e disse que tinha que ir e perguntou se a mulher passara sua roupa. Geni respondeu que sim e estava em cima do sofá da sala.
Com passos lentos Francisco pegou e se encaminhou ao quarto para trocar a roupa e botar o macacão.
Olhou-se no espelho e viu as rugas, cabelos brancos. Notou o tempo passar e ele ficar pra trás. Todos os sonhos desfeitos, a vida de cor de rosa não tinha nada, era uma pedreira que ele tinha que quebrar todos os dias.
Escovou os dentes, sentiu dor e mais uma vez resmungou que tinha que ir ao dentista. Encontrou Geni com sua marmita na mão na sala. Deu um beijo na testa da mulher desejando bom dia, lhe deu vinte reais e saiu com Geni indo acordar os filhos.
Isso tudo e não era nem seis da manhã.
Desceu o morro com os traficantes armados lhe desejando bom dia. Viu garotos de doze, treze anos com fuzis na mão, cordões de ouro, tênis de marca, produtos que valiam mais que três meses de salários dele. 
Respondeu os cumprimentos e saiu da favela se dirigindo a estação de trem.
Como sempre o trem estava quebrado. No meio daquela confusão não restou alternativa a Francisco senão encaminhar-se ao ponto de ônibus.
O veículo demorou e quando chegou veio abarrotado. Francisco em pé viajava no ônibus e era empurrado de todas as formas. Os passageiros gritavam ao motorista que não dava mais ninguém na condução, mas o homem mal humorado mascava chicletes e botava mais gente pra dentro.
Depois de uma hora e meia de viagem Francisco chegava ao prédio que ajudava a construir, um arranha céus na Barra da Tijuca. Lugar dos mais ricos do Rio de Janeiro que contrastava com a pobreza que Francisco se acostumara na vida.
Tomou bronca do chefe de obras pelo atraso e pediu desculpas contando do problema com o trem. O homem disse que não queria desculpas e sim trabalho e logo Francisco estava com os outros companheiros virando cimento.
Eram muitos trabalhadores naquele projeto ambicioso, o maior prédio da América Latina. Um grande centro comercial que renderia milhões de reais para a cidade e um salário mínimo para Francisco até o término das obras.
Os homens corriam de um lado para o outro. Mexiam em cimento, tijolos, areia, pedras, subiam e desciam por andaimes. Era um enxame humano construindo algo que nunca frequentariam.
Apesar de ser inverno o Sol saíra com força e Francisco na altura do décimo quinto andar trabalhava no andaime com seu melhor amigo, o Curió. Curió sonhava em ser artista e passava o tempo todo cantando animado músicas de Roberto Carlos dizendo que seria tão famoso quanto o rei. Francisco martelava, acimentava e só torcia para chegar logo seis da tarde.
Na hora do almoço os dois sentados no andaime comiam olhando a vista e Curió comentou que de onde veio não tinha nada tão bonito. Curió era um daqueles nordestinos do sertão que achavam que encontrariam o dinheiro e a felicidade no “Sul Maravilha”, mas só encontrou a solidão.
Francisco mais velho, mais amargo só olhava enquanto dava colheradas no feijão com arroz. Curió comentava com o amigo que ali do alto as pessoas viravam formigas de tão pequenininhas e Francisco respondeu que pequeninos eram eles, mesmo lá de cima.
Depois de beber um pouco de água Francisco perguntou se o amigo tinha noção de quantos colégios e faculdades ele já ajudara a construir com suas mãos calejadas. Curió respondeu que não e o homem contou que oito escolas e três faculdades. Curió ficou impressionado e Francisco respondeu que mesmo assim estudou apenas até o terceiro ano e nunca sonhou nem em entrar numa faculdade.
Curió resignado respondeu que a vida era assim mesmo e Francisco levantou limpando a boca e dizendo que não devia ser, porque eram eles que construíam o país e depois de inaugurado nunca mais conseguiriam entrar naquele prédio.
Curió levantou e respondeu ao amigo que isso mudaria um dia e Francisco discordou dizendo que não. O poder estava ai no alto daquele prédio e os dois juntos com todos os operários daquela construção estavam ali embaixo, com o tamanho de formiguinhas.
Voltaram ao trabalho e ficaram ali ralando debaixo do Sol até as seis da tarde. Deu o tempo de saída e eles formaram fila pra bater o ponto na saída como se fossem soldados do exército. Máquinas prontas para serem desligadas.
“Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido”
Pegou o ônibus de volta para casa pegando um engarrafamento monstruoso, mas pelo menos conseguiu voltar sentado. Encostado à janela viu a chuva desabar de forma intensa e observava a janela ficar molhada pelas gotas. 
Concentrou-se naquele ato da janela sendo molhada pela chuva caindo como se fosse a coisa mais importante do mundo e de certa forma saiu daquela cena trágica que ocorria com a água subindo e trazendo enchente, carros sendo levados e pessoas com água pela cintura.
Chegou no morro e parecia que vivia em outra cidade porque não caíra uma gota de água lá. Parou em um bar e pediu uma dose de cachaça. Sentou-se em uma mesa de frente a rua e devagar saboreava aquele copo de pinga como se fosse vinho italiano.
Era o seu momento de prazer no meio daquela vida ordinária.
Engolia aquela cachaça com imenso gosto, quase sendo um orgasmo. Pegou maço de cigarros e acendeu um soltando a fumaça para o alto. Geni não deixava que o homem fumasse nem bebesse, alguns dos poucos prazeres que tinha na vida.
Subiu a favela e entrou em casa. Deu um beijo nos filhos e perguntou pela mãe. Geni entrou na sala com balde cheio de água dizendo que precisava da ajuda de Francisco. Mais uma vez faltara água e eles teriam que pegar na biquinha no alto do morro.  
E Francisco cansado de tanto trabalhar subiu com Geni e pegou a água.
Francisco tomou banho, jantaram sopa e depois o homem sentou em frente a TV para assistir um pouco de telejornal. Lá viu que as coisas estavam difíceis para o povo e mais um escândalo de corrupção estourava no país. 
Quase adormecendo Francisco via o deputado na tv dizendo que as acusações eram mentirosas e pensava na vida boa que aquele homem tinha, roubava o povo, o seu dinheiro e ficaria por isso mesmo enquanto ele tinha que acordar cedo e trabalhar na construção.
Mais alguns minutos e Francisco estava na cama para descansar o corpo.
Na manhã seguinte tudo igual. Francisco acordou, foi tomar banho, dessa vez com balde por a água não ter voltado. Comeu o pão com café enquanto Geni reclamava. Trocou de roupa, escovou os dentes e na hora de se despedir deu cinquenta reais na mão da mulher, cumprimentou os bandidos e foi pra estação.  
Mais uma vez trem quebrado e teve que pegar ônibus, mas dessa vez conseguiu não chegar atrasado. Bateu ponto e subiu o andaime ajudando a empilhar tijolos, passando cimento e construindo paredes que guardariam as vidas e os sonhos de uma elite que nem olhava para sua cara na rua.
Na hora do almoço estava com Curió no andaime olhando a vista e o amigo só falava no esquema de corrupção que vira na tv. Francisco ouvia e comia o frango que Geni colocara na sua marmita torcendo pra chegar as seis horas. Curió então perguntou se Francisco lembrava do Zelão, um companheiro deles em uma obra anterior.
Francisco respondeu que sim e Curió contou que ele caíra de um andaime na construção de um shopping evangélico e estava entre a vida e a morte no hospital. Francisco perguntou como era essa história de shopping evangélico e Curió respondeu que era um shopping só voltado ao público evangélico, com produtos cristãos.
Francisco deu uma colherada na comida e falou que a vantagem de cair de um andaime de uma construção cristã era que pelo menos Zelão devia estar sendo cuidado por Deus. Bateu o ponto seis da tarde na fila dos “soldados máquina” e no ônibus novamente observava pela janela a vida passando do lado de fora. Chegou no morro e bebeu sua cachaça como se fosse um príncipe. Bebia a pinga e se sentia bem, como se ouvisse uma música.
Entrou em casa, deu um beijo nos filhos, na mulher, jantou e sentou-se a frente da tv que mostrava as casas, lanchas e fazendas do deputado acusado de corrupção. Adormeceu ali mesmo.
“Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe” 
Acordou no dia seguinte, foi tomar banho, sentou-se para o café da manhã com Geni reclamando das contas que tinha que pagar, trocou de roupa, viu como estava velho, escovou os dentes, reclamou do dente, deu um beijo em Geni lhe dando dez reais e pedindo desculpas por ser o que ele tinha e foi para o trabalho.
Dessa vez conseguiu pegar o trem que andou por duas estações e quebrou. Andou pelo trilho por um quilômetro, foi para o ponto de ônibus, pegou um super lotado e chegou na construção meia hora atrasado tomando uma bronca federal do chefe de obras.
Estranhou a ausência de Curió e perguntou aos outros operários por ele. Um contou que ele tinha morrido.
Francisco assustado perguntou o que ocorrera e o homem respondeu que ele chegava em casa e foi confundido com um bandido sendo assassinado pela polícia.
Outro homem ouviu e contou que achava que Curió era bandido, pois, foi encontrado com arma na mão e o homem que contou a história mandou que ele deixasse de ser burro que a polícia tinha posto a arma na mão dele e essa era uma ação normal dela.
Francisco calejado pela vida e suas dores sentiu o impacto da morte de Curió e se abalou. Voltou ao trabalho, mas não conseguia se concentrar. Deu uma martelada no dedo e saiu gritando palavrões e reclamando.
Na hora do almoço sentou no andaime e sentiu falta do amigo, via as pessoas como formigas lá embaixo quando o chefe de obras chamou.
Francisco perguntou o que o homem queria e o chefe contou que infelizmente devido a problemas com o dono do prédio ele teria que dispensar algumas pessoas e por seus atrasos Francisco estava no grupo de demitidos.
Francisco ouvia a tudo sem esboçar reação e o chefe contou que todos os seus direitos estavam resguardados e ele receberia direitinho. Quis saber se Francisco tinha alguma pergunta e o homem respondeu que não. O chefe então contou que ele estava dispensado.  
Francisco saiu e andou até o andaime. De lá via os trabalhadores dispensados irem embora como máquinas enferrujadas e o chefe de obras conversando com o dono do prédio. Era o deputado corrupto.
O operário chegou na beira do andaime e olhou o céu com a concentração que olhava a janela do ônibus e bebia sua cachaça.  
Pensava no sistema e como ele era cruel. Nos dava a concessão de viver e existir, um pão duro pra roer e uma cachaça pra engolir, a certidão pra nascer e o andaime pra cair. Tratava a todos como máquinas construindo seus sonhos e nos dando as migalhas que formigas carregam para suas casas.
Francisco fechou os olhos, estendeu os braços e saltou como um pássaro.
Caindo no meio da avenida provocando um engarrafamento abissal. Os motoristas enfurecidos buzinavam e pediam para que tirassem logo o corpo para cumprirem seus compromissos.
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

 

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