AMOR: CAPÍTULO 3 - A VIAGEM




Minha mãe e Pinheiro eram casados há apenas cinco anos, portanto eu já tinha oito quando isso ocorreu, então não posso dizer que cresci com o homem. Mas lhe via como um pai.

Meus pais se separaram antes que eu nascesse. Na verdade eu nasci de um “acidente” entre dois adolescentes irresponsáveis. A diferença é que minha mãe cresceu, meu pai não.

Meu pai era do tipo malandro, sambista, gostava de mulheres e de cachaça. Seus amigos lhe adoravam. Ai de quem falasse mal do Turco na frente deles, era assim que lhe chamavam, mas não era um bom pai.

Não que ele fosse má pessoa. Não, longe disso. Meu pai nunca me destratou, me ofendeu, brigou ou me bateu. É, talvez o problema fosse esse.

Meu pai não era pai, não nasceu para ser pai.

Nunca me deu um presente de aniversário, aliás, nunca me desejou feliz aniversário. Acho que meu pai nem sabe minha idade ou o dia de meu aniversário. Era gente boa, tinha bom papo comigo quando nos encontrávamos sem querer na rua, mas eu não tinha intimidade nenhuma com ele. Era como se eu encontrasse um estranho.

Fora que bebia demais. Ficava bêbado, caindo pelas tabelas e isso me envergonhava. Nunca me esqueci de uma vez que eu chegava em casa e vi os meninos jogando bola na rua. Faziam roda de bobo e quando percebi o bobo era meu pai. Ali no meio bêbado rindo e correndo de um lado para outro atrás dos meninos que gargalhavam.

Ele me chamou para jogar também e dei uma desculpa qualquer para ir pra casa. Não queria passar por aquilo. Não queria viver aquilo.   

Pinheiro era diferente. Era um paizão mesmo não participando de minha concepção. Tipo de cara que foi preso uma vez no quartel porque tentou sair de lá em um dia de serviço que era meu aniversário também e não deixaram. Quase socou o superior, foi detido e me ligou chorando.

Cara para todos os momentos, todos os conselhos. Que dava bronca explicando o motivo da bronca e força quando necessário. A melhor pessoa possível para me buscar na delegacia naquela noite.

E assim foi.

No dia seguinte éramos o assunto da escola. A batida policial chegou nas manchetes de jornal e nos reconheceram mesmo com as tarjas pretas nos olhos. Evidente que a zoação foi extrema. Chegamos no colégio já encontrando os jornais nos murais, os moleques ficaram rindo de nossa cara e ainda tivemos que assistir aula sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.

Pior foi a gorda de cento e oitenta quilos do segundo ano dizendo que por metade do valor do puteiro transava comigo. Sentava em cima de mim e fazia o serviço.

Imaginei a cena e me aterrorizei sentindo pena do meu pinto. Ele se escondeu atrás do saco apavorado.  

Pior, evidente, foi para Jéssica já que descobriram que ela trabalhava no local. Não apareceu na escola naquele dia e nem mais em dia nenhum. Os pais não só lhe tiraram da escola como se mudaram da cidade.

Perdia assim o meu amor, minha musa que esteve tão próxima de mim. Lamentava não poder ter concretizado nosso amor e que não lhe veria mais. Mas lamentava mais por ela. Devia estar enfrentando uma barra.

Barra que não era maior que a que um grande amigo meu começaria a passar.

Um dia estava em casa jogando vídeo game e tocaram campainha. Atendi a porta e minha amiga Bia estava chorando. Nada entendi e perguntei o que ocorria quando ela me abraçou.

Dei um copo de água para ela e perguntei novamente. Bia respirou e comentou “Jessé ta no hospital, ele ta muito legal não”. Perguntei o que ocorria e ela respondeu “Não sei dizer, parece que está com anemia. Foi pro hospital e ta internado”.

Tentei acalmar Bia dizendo que devia ser nada e ela me pediu que a levasse ao hospital. Prontamente atendi.

Achei realmente que fosse nada. Pessoas são internadas todos os dias e saem de boa. Chegando no hospital encontrei a mãe de Jessé consternada sendo amparada por familiares e Samuel e Guga encostados em um canto. Fomos até a eles e enquanto Bia abraçava o irmão que lhe consolava perguntei o que estava pegando.

Guga perguntou “Lembra que o Jessé sempre reclamava de estar cansado, sem fôlego, a gente zoando que ele ficava sempre em último nas corridas?”. Respondi que sim e ele completou “Cara, suspeita de leucemia. A parada é sinistra”.

Não podia ser. O nosso adorável ogro não podia estar com câncer. Me assustei enquanto Bia aumentou o choro e Samuel achou melhor levá-la pra fora para não assustar a família.

Perguntei se era tão grave assim, se tinham certeza de alguma coisa e Guga respondeu que não. Perguntei se podíamos ver nosso amigo e Guga teve a ideia “Não sei, podemos tentar”.

Conversamos com a mãe, com o médico e conseguimos.

Entramos no quarto e Jessé parecia bem. Reclamou apenas de fome e falamos de amenidades. Rimos lembrando da noite no puteiro e ele lamentou de perder o UFC naquela noite. Saí do hospital com sensação ruim. Algo grave realmente ocorria.

Jessé estava mesmo com leucemia e rapidamente começou o tratamento. Fez quimioterapia, radioterapia e nosso amigo que sempre foi gordinho e era apelidado de Shrek ficou careca e magro.

Aquilo dava um grande aperto no coração. Às vezes Jessé era internado,não podia comparecer a aula e a carteira ao lado da minha na sala de aula ficava vazia.

Os quatro mosqueteiros estavam desfalcados e aquilo doía.

A impressão que dava era que nosso amigo estava perdendo a batalha para a doença com apenas treze anos de idade. Uma vida inteira pela frente.  Não podíamos fazer nada para mudar o futuro. Mas podíamos para mudar o presente.

E eu tive uma ideia numa noite especial pra mim.

Minha mãe tinha ido visitar minha avó e só voltaria no dia seguinte. Pinheiro era um desastre na cozinha e decidiu fazer naquela noite sua especialidade.

Pedir uma pizza.

Comíamos uma pizza gigante meio camarão, meio calabresa bebendo refrigerante e vendo futebol quando do nada ele perguntou “E aí? Conseguiu transar ou ainda está na punheta?”.

Eu bebia o refrigerante na hora e me engasguei saindo guaraná pela boca, nariz, todos os buracos de meu corpo. Pinheiro riu e ele mesmo respondeu “Já vi que continua cabaço”.

Eu não sabia onde enfiar a cara quando ele levantou e disse “Vou te ajudar”. Pegou a carteira no quarto, voltou e disse “Vamos embora”. Perguntei para onde e ele respondeu “Perder a virgindade”.

Pegamos um ônibus indo até uma praia aqui mesmo na Ilha do Governador, perto do quartel onde os fuzileiros servem. A dona de uma das casas o cumprimentou chamando pelo nome e Pinheiro disse “Arrume uma especial pro meu filho. Ele vai perder o cabaço hoje”.

Eu não sabia se o agradecia ou mandava tomar no cu.

Pinheiro constrangido e sem olhar pra mim disse “Venho muito aqui beber cervejinha com o pessoal. Só pra isso”. Ficamos uns segundos em silêncio e ele completou “Se falar pra sua mãe eu te capo”.

Um pouco depois a velha voltou com uma mulher que parecia até mais velha que ela, sem os dentes da frente e com peitos menores que do Edson Carlos, um moleque gordo de nossa turma. A dona da casa disse “Arrumei uma especial pro menino”.

Nós só olhamos incrédulos e ela completou “Ele é cabaço, pra um cabaço ta muito bom”. Pinheiro olhou pra mim e disse “Guerreiros nunca fogem da luta” me empurrando pra velha.  

Adoraria falar que minha primeira vez foi com a mulher da minha vida ouvindo música romântica com lareira, vinho e fogos estourando. Mas foi com uma velha desdentada, peitos muxibas e que custou 12 reais.

Pelo menos não fui eu que paguei. Foi o Pinheiro.

Voltamos em silêncio no ônibus para casa e em determinado momento ele perguntou se foi bom. Respondi “foi legal” e ele começo a contar de sua primeira vez, que tinha sido num puteiro parecido onde foi com sua turma de amigos.

Eu não estava muito interessado naquela história. Mas ele foi contando, contando até que contou a vez que junto com amigos fugiu de casa e foi viver uma aventura em Manaus, lembre-se que ele é paraense, viveu um mês lá com os amigos trabalhando, se divertindo e deixou os pais de todos loucos.

Rapaz. Aquilo me deu um estalo.

No dia seguinte Bia, Samuel e Guga visitavam Jessé que estava deitado em casa com uma aparência melhor. Dizia o meu amigo que estava curado quando cheguei. Eu estava ansioso, tinha ido correndo para a casa dele e entrei no quarto suado, cansado. Perguntaram-me o que ocorria. Contei que tinha duas novidades, a primeira que eu tinha transado.

A segunda que iríamos viajar.

Eles perguntaram “Como assim você transou?” enquanto eu empolgado falava da viagem. Contei a história de Pinheiro que viajou com amigos e faríamos o mesmo.

Estava tudo planejado em minha cabeça. Iríamos mês seguinte para Búzios aproveitar o carnaval. Samuel perguntou com que dinheiro e respondi “Temos um mês para economizar mesadas. Podemos fazer bicos nesse período. Vamos como mochileiros. Levamos barracas e vamos acampar”.

Perguntaram também como faríamos com nossos pais, já que éramos menores de idade, respondi que eles nunca deixariam então escreveríamos cartas e deixaríamos para eles comunicando que fomos viajar e que nos preparássemos para as consequências na volta.

Mas valeria a pena. Se valeria.

Como eu disse estava tudo no esquema até que veio a pergunta que me desconcertou. Era de Jessé.

“Eu to morrendo Toninho. Como vou viajar?”.

Um silêncio tomou conta do local. Eu fiquei com nó na garganta até  que virei para ele e disse com todo o afeto “Você só fala merda”.

O mês foi passando nos preparávamos para a viagem sem que os pais desconfiassem de nada. Tudo ia quase perfeito com exceção de Bia. Queríamos fazer um programa de homens sem a presença dela que ficou furiosa, mas com o tempo acabou aceitando.

A noite chegou e saímos de nossas casas sem que ninguém percebesse. Nós quatro nos encontramos em uma praça próxima a nossas casas com mochilas nas costas e ansiedade. Jessé estava debilitado, perdera os cabelos e eu não sabia se iria aguentar o tranco.

Após um acesso de tosse dele perguntei se meu amigo estava bem e Jessé com todo afeto do mundo respondeu com uma pergunta “Virou minha mãe agora viado?”.

Fomos para a rodoviária e ao nos encaminharmos para o ônibus demos de cara com Bia e sua mochila nos esperando. Antes que falássemos alguma coisa nossa amiga disse “Nem tentem me mandar de volta que deduro o esquema todo e outra, vocês planejaram como viajariam sendo menores de idade? O motorista nunca deixaria”.

Realmente não planejamos e ela completou “Entrem crianças, já resolvi isso”.

Bia sempre foi a que melhor guardou dinheiro do nosso grupo e confesso que a mais inteligente também. Ela reservara uma graninha pro motorista não perceber que éramos menores.    

Chegamos e não precisamos acampar. A grana deu para ficar em um albergue e assim que deixamos nossas coisas no local fomos curtir aquela cidade paradisíaca. Cinco amigos que são como irmãos desde crianças. Que cresceram juntos, dividiram alegrias, tristezas, sonhos, risadas, brigas, mas acima de tudo se amavam e estavam ali celebrando essa amizade. Celebrando o amor.

Curtimos. Zoamos tudo. Paqueramos, demos beijo na boca,  bebemos até dizer chega e no fim da primeira noite surgiu ate um cigarrinho de maconha para experimentarmos.

Estávamos sentados em um canto qualquer da cidade juntos. Os cinco lá fumando maconha pela primeira vez e posso dizer que nossa reação foi normal. Mentira. Ríamos como loucos e cantávamos Bob Marley de forma desconexa.

Jessé muito doido disse “Cara se eu morrer faço questão de pedir autógrafo de Bob Marley lá no céu. Será que no céu dão autógrafos? Imagine que irado eu lá com o cara. Marley e eu!!”.

Deu uma puxada na maconha e gargalhou “Marley e eu!! Isso é nome de filme cara!!”.

Era uma coisa idiota demais. Mas naquele momento nos fez rir de um modo que eu fiquei sem ar.

No dia seguinte acordei com toda a ressaca do mundo antes de todos. Enquanto dormiam decidi ir até uma padaria próxima tomar um café preto para ver se curava a ressaca.

Fui atravessar a rua aproveitando que o sinal estava aberto para mim e vi mais nada.

Acordei no chão zonzo, sem entender nada do que ocorria até que achei que tivesse morrido, pois tive a visão do paraíso.

Nunca me esquecerei daquele dia e acredito que na hora da minha morte a última cena que passará em minha mente antes de fechar os olhos definitivamente será aquela. A cena que mudou a minha vida.

A primeira vez que a vi.

Ela estava lá. Com treze anos de idade apenas e com todo frescor que a adolescência oferece. Assustada falava com uma menina ao lado que me pareceu ser uma amiga “A gente tem que fazer alguma coisa antes que a polícia chegue. Se descobrirem que eu quem dirigia to frita”.

Ela notou que eu abrira os olhos e se virou para mim. Abaixou-se até próxima ao meu rosto e ficamos ali face a face quando ela perguntou se eu estava bem.

Sim eu estava. Fiquei com vontade de ali mesmo lhe pedir em casamento. Dei um sorriso e respondi “não” desmaiando.

Acordei apenas no hospital e enquanto abria os olhos percebi com minha vista embaçada a presença de uma menina. Sorri dizendo “você” quando a mesma se aproximou. Era Bia.

Desanimado repeti o “você” com Bia percebendo e perguntando qual era o problema. Desconversei e ela completou “Uma menina que te trouxe pra cá e ficou horas na recepção preocupada contigo”.

Ficou preocupada, mas foi embora sem deixar o nome nem telefone. Apenas meu coração disparado como nem Jéssica conseguiu. 

Meu saldo foi um braço quebrado e gesso nele. Continuei curtindo o carnaval da cidade com meus amigos, mas tentando achar minha atropeladora. Saía pela cidade atrás dela, olhava por todos os cantos e nada.

Samuel curtia maconha, estava gostando tanto que até pensava em se mudar para Jamaica. Bia arrumou um namoradinho que acabou virando coisa séria levando esse romance para o Rio de Janeiro. Guga finalmente virava o conquistador que sempre nos disse que era beijando mais de dez meninas por noite. Eu procurava minha atropeladora, cada vez com menos esperanças.

E Jessé? Jessé vivia.

Dois dias depois entrei no quarto do albergue tomando um susto ao encontrar todos os nossos pais ali. Pinheiro ao me ver disse “Só faltava você” enquanto minha mãe se levantou da cama onde estava sentado e começou a me dar tapas perguntando onde eu estava com a cabeça.

Na manhã daquele dia Samuel, já no barato da maconha, ligou para casa dizendo que amava todo mundo, queria ir morar na Jamaica e acabou entregando onde estávamos.

Ainda faltava um dia para acabar o carnaval, mas para a gente acabava ali.

Entramos na van que os pais alugaram para nos buscar e partimos. Eu olhava para trás me despedindo da cidade que fiquei tão pouco tempo e me diverti tanto, me despedindo da minha atropeladora que nem tive tempo de conhecer quando senti uma mão em meu ombro.

Quando olhei era Jessé. O meu amigo deu um sorriso e disse “Obrigado”.

Retribuí o sorriso e ele encostou-se à poltrona da van para dormir.

Jessé morreu dois meses depois e no enterro junto com Guga, Samuel e Bia me despedi do meu grande amigo. A primeira perda que tive na vida. A perda de um garoto bacana, inocente e que eu sabia que levava com ele para o caixão um pedaço de mim e me apresentava a vida adulta com todo seu amargor e saudade.

Mas também as doces lembranças.

Saí do cemitério andando quando Pinheiro buzinou no carro com minha mãe para que eu entrasse. Respondi que queria andar sozinho um pouco, minha mãe tentou me convencer e Pinheiro apenas disse “Deixe Hellen, deixe”.

O carro partiu e continuei andando. Lamentava com Deus perguntando porque levara um menino de treze anos apenas. Com uma vida toda pela frente.

Aí nesse momento lembrei de seu sorriso e seu obrigado na van.

De todas as nossas experiências, daquela curta viagem e pensei que talvez a missão dele estivesse cumprida.

E era a hora de cumprir a minha. Minha caminhada apenas começava. Com a curiosidade de uma borboleta que voava e parecia me acompanhar. Será que ela me mostraria o caminho a seguir? Não sei, mas eu iria caminhar observando aquela borboleta e levando meu amigo no peito.

Te amo Jessé. Até um dia Shrek.

Até um dia meu amigo.

E não se esqueça do autógrafo de Bob Marley.

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