AMAR DE NOVO - CAPÍTULO V - RECOMEÇO


Evidente que a opinião pública ficou contra meu filho. Revoltados pela pequena pena que recebeu gritavam que o Brasil era o país da impunidade. Fiquei feliz que tenha se livrado de coisa pior, mas me sentia incomodado. Eu era um dos que sempre reclamavam de impunidade e agora estava "do outro lado".

Mais incomodado do que eu estava Gabriel. Ele não queria ficar conhecido como assassino, ou pior, o assassino que ficou impune. O mais rapidamente possível tratou de cumprir sua pena. Tentamos um jeito para que ele cumprisse em nossa ONG, mas ele não quis, não queria nenhuma forma de proteção e foi a uma que não tinha nenhum vínculo conosco.

Conseguiu colocação em uma ONG de São João do Meriti que servia como ambulatório e creche para crianças carentes.

A diretora aceitou meu filho na ONG e lhe ofereceu trabalho burocrático, cuidar de papeladas e que fizesse palestras sobre perigos do trânsito. Ele topou fazer as palestras,mas não concordou com o papel burocrático. Queria pegar no pesado.

Meu filho não era do tipo de papéis burocráticos.

Gabriel no dia seguinte cedo pegou dois ônibus, já que perdeu a carteira de motorista, e foi trabalhar. Passou a manhã ajudando pedreiros na construção de um novo muro e ficou vendo as crianças brincarem. Meu filho sempre gostou de criança, dividia comigo os sonhos de ser pai e se encantou em ver os moleques jogando bola.

A bola caiu perto dele e os meninos gritaram pedindo que devolvesse. Gabriel, bom de bola, mostrou toda sua habilidade e fez embaixadinhas com um dos meninos comentando "O tio é craque". Cheio de si Gabriel chutou a bola em direção aos meninos, Mas errou.

Acertou a cabeça de uma jovem, que sentada, lia histórias para meninas.

A criançada começou a rir enquanto a jovem levantou furiosa e foi reclamar com ele. Enquanto a menina, na altura de seus vinte anos, reclamava Gabriel olhava e sorria. Não conseguia parar de sorrir. Ela perguntou qual era a graça e meu filho pediu desculpas dizendo que tinha graça nenhuma.

A jovem mandou que prestasse atenção em seu trabalho e voltou ao encontro das meninas. Mas Gabriel não conseguia mais prestar atenção. Não tirava os olhos da jovem.

Na hora do almoço Gabriel foi ajudar a servir as bandejas de comida e a jovem estava na fila. Na hora de servi-la perguntou se a cabeça estava doendo. Irritada ela perguntou "Você está fazendo troça da bolada que me deu?". Ele riu e perguntou "o que?". Ela novamente disse "Fazendo troça, você está?".

Gabriel gargalhou e comentou que desde que seu avô era bebê não falavam "troça". Ela fechou a cara, soltou um "desaforado" e foi com uma bandeja para a mesa. De lá comia enquanto era observada por Gabriel. Às vezes a moça olhava de volta e rapidamente virava o rosto mostrando incômodo.

De tarde Gabriel fez uma palestra para os mais velhos falando dos problemas do trânsito e contando sua história. No meio da palestra a jovem entrou na sala e esbarrou em uma cadeira. Pediu desculpas pelo atraso e barulho e percebeu que era meu filho o palestrante ao olhar pra frente.

Gabriel desculpou e disse "Tudo bem, só não faça troça de minha palestra". Sem graça ela sentou e assistiu.

Gabriel contou toda a história. Como se sentia mal com tudo aquilo, que não era bandido, mas isso não fazia dele inocente de um crime e passou recomendações básicas de trânsito. No fim do dia, cansado de um trabalho exaustivo, foi para o ponto esperar o ônibus.

A jovem passou, buzinou e perguntou para onde ele iria. Gabriel respondeu Ipanema e ela perguntou "Vou para Copacabana, quer carona?". Ele estranhou e perguntou "Ué, você não me odeia?". Ela respondeu que não e mandou que entrasse.

Quando ele entrou a jovem disse "Ainda não te odeio, mas quem sabe no trajeto você não me convence disso?".

O carro prosseguia e a jovem se apresentou. Chamava-se Thais. Gabriel foi se apresentar e a jovem interrompeu "Você eu sei quem é. Você é famoso. Só não estava associando o nome a pessoa até a  palestra".

Olhando pela janela Gabriel ironizou dizendo que era um orgulho ser tão famoso e Thais complementou "Ainda mais matando uma freira tão amada e candidata a prêmio Nobel da Paz".

Permanecendo na ironia meu filho revidou "Pois é. Mas um dia descubro um modo de beber cerveja e emagrecer. Ganho um Nobel de Química e compenso o Brasil".

Thais comentou "Seria irônico você devolver o Nobel ao país justo com bebida". Gabriel devolveu "A vida é irônica" e a menina perguntou porque ele achava a vida irônica. Meu filho respondeu "Ironia é uma forma que temos de nos comunicar sem ofender as pessoas".

Thais perguntou se ele queria lhe ofender e Gabriel respondeu "Ainda não quero. Mas quem sabe no trajeto você não me convence disso?".

Encerraram um pouco o duelo verbal e continuaram pela Dutra em silêncio.

Alguns minutos depois Thais interrompeu o silêncio e perguntou "Então sem ironias, direto ao assunto. Nunca te ensinaram que não se deve beber antes de dirigir?", Gabriel respondeu que não e por causa disso vinha sendo obrigado a fazer trabalho em ONG. Perguntou a  ela qual crime tinha cometido para também estar na ONG e Thais respondeu que nenhum, fazia o trabalho porque gostava. Era assistente social.

Gabriel riu, Thais perguntou o motivo da graça e ele respondeu "Você vai ganhar o Nobel da Paz que eu tirei do Brasil". Thais perguntou se para ele tudo era piada e se sair para noitadas com amigos, se embebedar e matar inocentes também era piada quando Gabriel mandou que parasse o carro. Thais perguntou qual era o problema e ele repetiu dizendo que queria descer.

Thais parou e Gabriel abriu a porta descendo. Irônica a moça perguntou se tinha conseguido ofendê-lo e ele respondeu "Não. Você dirige muito mal, mesmo sóbria e chega de confusões no trânsito para mim esse ano".

Thais botou a primeira marcha, olhou para Gabriel, disse "é, conseguiu, já te odeio" e foi embora. Enquanto ela partia Gabriel sorriu e comentou "Essa garota é linda".

Eu estava em casa vendo televisão quando Gabriel chegou. Perguntei ao meu filho como tinha sido no trabalho e ele respondeu "ótimo". Parei, olhei por alguns segundos para Gabriel que sorrindo me perguntou qual era o problema. Dei um sorriso e respondi "Esse brilho no olhar. Eu conheço". Ele riu e perguntou da onde e respondi "Já tive".

Gabriel foi se deitar e voltei a ver televisão. Sim, eu lembrava daquele olhar. Era do tempo de Camila.

No dia seguinte Gabriel trabalhava ajeitando o muro quando Thais passou. Ele aproveitou que a bola estava perto e chutou em direção a moça. Thais olhou irritada para meu filho que sorrindo disse "quase". Thais fechou a cara e continuou andando enquanto Gabriel gritava "bom dia".

Um pouco mais tarde a diretora chamou Gabriel em sua sala. Ele entrou e Thais já estava sentada. Perguntou qual era o problema e a senhora respondeu que a moça fizera queixa dele.

Gabriel se sentou e a diretora explicou que ela se queixou de "bullying". Gabriel respondeu "Bullying, troça, o cardápio está cada vez mais variado". Thais comentou que aquilo não tinha graça e a diretora pediu que ele parasse com aquele comportamento.

Gabriel prometeu parar e disse que não dirigiria mais a palavra a ela. A diretora agradeceu e os dois saíram. Andando lado a lado Gabriel sorriu, soltou um "chata' e apressou o passo.

É..Ele estava apaixonado.

Os dias prosseguiram e Gabriel cumpriu a palavra. Não falou mais com Thais. Mas lhe namorava com os olhos, acompanhava seus passos e parecia gostar daquele jogo de "gato e rato".

Ele expansivo, flor da idade, cheio de vida. Eu retraído, aos 40 anos sentindo o peso da idade que nem era tão alta assim. Me sentia muito velho para meus 40 anos.

Maioria dos meus amigos estavam casados, com famílias e eu vivia para o trabalho. Acordava cedo, tomava um café rápido e saía para a empresa. Almoçava ali mesmo no escritório e no fim da noite voltava extenuado para ver um pouco de televisão e adormecer no sofá. Acordava, deitava na cama e me perdia entre sonhos, saudades e lembranças.

Como disse, meus amigos todos casados e com família então nem que eu quisesse me divertir tinha chances. Menos um evidente. Menos Guga. Meu amigo me chamava direto para sair até que um dia topei para seu susto. Fomos a uma boate.

É..Uma boate. Eu não era muito de boates quando novo, imagine velho. Mas fui com meu amigo. Música "bate estaca" no último volume, todas aquelas luzes, aquilo não pertencia ao meu mundo. Parei em um bar, pedi uma bebida e Guga me disse "vamos para o ataque". Ri e perguntei "o quê?" e ele novamente disse "ao ataque".

Comentei que ali só tinham jovens e ele perguntou "E nós somos o que? Velhos?". Antes que eu comentasse algo meu amigo completou "velho só se for você. Eu sou jovem". Nisso apareceram Ericka, Jessé e Francisco. Jessé logo dizendo "Oi tio,você por aqui" e eu falando pro meu amigo que éramos sim velhos tanto que tinha garoto de um metro e oitenta me chamando de tio. Ericka riu, pegou a mão de Guga e nos chamou para dançar. Meu amigo topou, mas eu preferi ficar no bar.

Aquele não era meu ambiente. Não era pra mim. Enquanto Guga se divertia com a molecada eu no bar bebia e pensava o que estava fazendo ali. Me preparava para ir embora quando uma moça se aproximou e perguntou se podia me pagar uma bebida.

Olhei para os lados e realmente era comigo. Nunca fora abordado daquela forma. Enfim, tímido como sou aceitei, bebemos um pouco e saímos daquela boate.

Na manhã seguinte acordei em um apartamento no qual não conhecia com uma mulher que não lembrava o nome. O arrependimento bateu e confesso que fui canalha como não gosto. Escrevi um bilhete, nele escrito "desculpa" e fui embora enquanto ela dormia.

Todos já sabem meu amor pela Camila, já estou até chato de tanto que falo, mas sou homem e claro que tenho minhas necessidades, minha alma ta morta, mas o corpo não. Namorei algumas pessoas depois de sua morte. Algumas por um período, outras só por uma noite, mas o fim sempre foi o mesmo. O arrependimento e a vontade louca de voltar para casa.

Naquele dia voltei e decidi mudar de vida. Mexi no armário e achei roupas mais despojadas, joviais. Coloquei e decidi correr no calçadão. Fui para "pista" com a cara e a coragem e comecei a correr. Me sentia um garotão, rejuvenescido e depois de cinco minutos correndo implorava por um balão de oxigênio.

Agachei tentando recuperar o ar quando ouvi uma voz dizendo "levanta preguiçoso". Quando levantei vi que era minha amiga Bia e abri um sorriso. Apesar de trabalharmos perto um do outro, ela comandava a ONG, e trabalhar com seu marido quase nunca nos víamos.

Perguntei como ela estava e respondeu que bem, com saudades de mim. Olhei para o relógio e comentei "Já corri demais e to cheio de fome, vamos tomar café?". Ela riu e perguntou "Acabou de se exercitar e já vai comer?". Ri, peguei o braço de minha amiga e finalizei "Não nasci pra isso".

Sentamos em uma lanchonete, pedi logo um milk shake com cheeseburger e falei que ali encerrava minha vida de atleta. Bia riu e comentei sobre minha noite anterior e como acordei. Minha amiga disse que eu precisava me apaixonar.

Respondi "É, é muito fácil, pa, pum, me apaixono. Quem dera a vida fosse fácil e eu me apaixonasse como são você e o Nando". Falei isso e percebi que minha amiga abaixou os olhos. Olhei para ela e perguntei "Como você e o Nando, não é?".

Bia olhou para mim e disse "Estamos com problemas".

É. Minha amiga estava com problemas. Eram muitos anos de casamento com Nando e o tempo acaba provocando desgaste. Desgaste que não passei com Camila por nossa relação ter sido tragicamente interrompida no auge.

Caíram na rotina, o ardor passou e Bia não sabia se ainda amava Nando. Não sentia mais tesão pelo marido e o pior é que outro homem surgia no caminho. Me senti no meio de uma encruzilhada. Bia era minha melhor amiga, Nando trabalhava comigo há anos. Falei para minha amiga respirar, pensar bem e medir cada ato.

Pensar, medir atos..Justo eu que sempre fui impulsivo e evitava criar juízo para criar histórias de amor falando aquilo...

Eu estava desacostumado com o amor enquanto Gabriel conhecia. Chamou a tia, sim sei que é esquisito falar isso, e terminou o casinho. Ericka entendeu de boa, era menina livre, solta e contou que estava a fim de um homem mais velho. Gabriel não tinha nada com Thais, mas queria focar nela.

E o pior que nem se falavam. Gabriel mantinha a promessa de não mais importunar a moça.

Em um final de tarde muitos já tinham ido embora. As crianças tinham partido com suas mães, exceção daquelas que moravam na ONG por serem órfãs. Thais arrumava suas coisas para partir e Gabriel ajudava a descarregar alimentos de um caminhão quando começaram a gritar "fogo".

Gabriel parou o que fazia e sentiu cheiro de fumaça. Começou a andar em direção a sede da ONG e viu parte da casa em chamas. Correu em desespero em direção a casa. Crianças saíam apavoradas. Ele conseguiu ajudar com que elas saíssem e também na saída de Thais que tossia muito por ter respirado fumaça.

As funcionárias fizeram a contagem e perceberam que faltava uma criança. O fogo já tomava conta da casa e Thais começou a gritar que faltava o Tobias.

Todos se desesperaram. Crianças e funcionária choravam. Gabriel não se fez de rogado. Correu para dentro da casa com Thais gritando para que ele não fizesse aquilo que era perigoso.

Meu filho era acostumado com o perigo. Não tinha medos.

Correu pela casa gritando por Tobias. Correu escondendo o rosto da fumaça e revirando toda a casa em chamas. Ouviu gritos vindos do banheiro. O menino estava preso lá dentro.

Gabriel se aproximou e gritou pedindo que o menino se afastasse da porta. Começou a usar toda força que tinha para tentar arrombar a mesma. Depois de um tempo conseguiu abrir.

Abriu e encontrou o menino em um canto tossindo e sufocado pela fumaça. Pegou Tobias pelos braços e saiu do banheiro segundos antes de uma parte do teto cair. Desceu a escadaria em chamas cobrindo seu rosto e do menino protegendo da fumaça. Com extrema dificuldade conseguiu passar pelo fogo, por destroços da casa e saiu da mesma com ele. Os dois sãos e salvos.

Quando saiu os bombeiros já estavam no local, assim como a imprensa. Os bombeiros correram para pegar Tobias do colo de Gabriel e Thais, que correu junto, perguntou como estava o menino. Com a resposta dele que estava bem ficou aliviada.

Thais virou para Gabriel e perguntou como ele estava. Meu filho respondeu que bem. Ela abaixou olhar e agradeceu. Gabriel respondeu "Não precisa agradecer. Meu normal é esse. Não ser o bandido da história".

Gabriel se isolou e sentou para respirar um pouco e ver a movimentação dos bombeiros apagando o incêndio e levando as crianças. A casa ficou toda destruída,mas nenhuma vida foi perdida. Meu filho estava todo sujo, preto da fumaça, machucado, cansado, mas feliz. Era como se tirasse um peso das costas.

Levantou e andou em direção aos outros. A imprensa percebeu sua presença e correu para entrevistá-lo. Sabiam de seu ato de heroísmo e perguntaram como era estar envolvido naquela situação após ser responsabilizado pela morte da freira. Gabriel apenas respondeu "Não sou bandido nem herói, apenas sou uma pessoa comum vítima das circunstâncias".

Disse que não queria falar mais nada e se afastou. Determinado momento viu que não estava sozinho. Virou-se e viu Thais.

Disse nada. Ficou olhando a moça que comentou "Me desculpe pelo mau jeito. Queria começar do zero de novo com você".

Gabriel pegou Thais de surpresa e lhe deu um beijo na boca. Daqueles apaixonados, de tirar o fôlego.

No fim do beijo Thais, furiosa, deu um tapa no rosto de Gabriel. Meu filho passava a mão pela face quando a moça gritou "Nunca mais faça isso. Nunca mais toque em mim". Ela se afastou, virou-se pra ele e disse "Eu te odeio Gabriel" indo embora.

Gabriel permaneceu com a mão na face e sorrindo comentou:

"Ela me ama".


CAPÍTULO ANTERIOR:

O ACIDENTE

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